Série A CORRENTE:
(Leia Antes: Prólogo, Capítulos: 1, 2, 3, 4, 5, 6,8)
Então é a vez de Lídia ouvir uma voz ao pé do ouvido: – Saia já daí. Ele quer te matar.
No apartamento de Roberto, Lídia e o cabo Dante lutam ardorosamente pela
vida do policial. Dante está dominado por uma força diabólica que o
impele a apontar uma arma para a própria cabeça e já teria disparado se
Lídia não estivesse segurando o seu braço em desespero. O estímulo para a
tentativa de suicídio vem do computador de Roberto.
– Para com isso, cara! – grita Lídia, praticamente pendurada no braço do policial.
– E-eu... não... consigo! – afirma Dante, usando de uma força de vontade
até agora desconhecida para evitar a sua morte. – P-pelo amor d-de
Deus, dona Lídia... Não... me deixe... m-morrer!
– Oh, meu Deus! Cara, eu não estou aguentando! – diz Lídia, ameaçando soltar o braço do policial. – Larga a arma!
– Não consigo! Meu Deus! Eu não consigo! – retruca o policial, chorando.
Sua força de vontade está esmorecendo aos poucos. E no monitor, à
medida que a bonequinha aproxima o fictício revólver da cabeça, ela
sorri bizarramente, deleitando-se com o desespero dos dois à sua frente.
Neste instante, Lídia escuta o soldado Da Matta falando com alguém no corredor do prédio. Agoniada pela situação, ela berra.
– Da Matta! Ajude aqui, pelo amor de Deus! O seu amigo vai morrer!
Da Matta chega e encontra o seu colega de trabalho engatilhando a arma
encostada na têmpora. Com rapidez, empurra-o contra a parede, contendo
as ações suicidas de Dante, desarmando-o e torcendo o seu braço em suas
costas.
– O que você está fazendo, cabo?
– E-eu não conseguia me mover! – afirma Dante, desesperado. Em seguida,
aponta para o monitor. – Aquela bonequinha queria que eu me m-matasse!
Lídia desliga o monitor e confirma que, aos poucos, Dante volta a ter controle de seu corpo.
– Pronto – diz para o cabo, ainda sendo pressionado contra a parede. – Acho que acabou.
– Já chega, soldado, pode me soltar – diz Dante para Da Matta, que o obedece imediatamente.
Dante se vira para Lídia, que soluça e chora, encostada no marco da
porta do escritório. Da Matta averigua o computador, procurando algo de
anormal nele.
– O que aconteceu ali? Como aquele “desenhinho” fez aquilo comigo?
Lídia não responde. Tudo o que pode se ouvir dela são soluços, pois o
que aconteceu naquela sala segundos atrás também foi totalmente novo e
assustador. Dante também não está muito bem. A sua armadura de coragem
foi totalmente destruída pela animação de uma bonequinha negra que quase
o fez espalhar sua massa cefálica por todo o escritório do rapaz que
vieram prender.
– RESPONDE, PORRA! – grita, descontrolado. – O QUE ACONTECEU ALI?
– Eu não sei! Eu juro que não sei! – diz Lídia, tão assustada com o
policial que chega a duvidar que ele tenha recuperado o controle sobre
si mesmo.
– MENTIRA! Você está envolvida em algo muito sério com o seu namorado e...
– Ele não é meu namorado! – interrompe Lídia.
Lídia o observa praguejar horrores. Às suas costas, o monitor liga
sozinho, fazendo com que sinta um frio percorrer sua espinha,
pressentindo o perigo atrás deste ato nefasto.
Dante continua a gesticular e olhá-la com uma mistura de nervosismo e
raiva. Mas ela já não escuta. Tudo em sua volta parece não fazer mais
sentido, não consegue mais enxergar Dante com nitidez, nem a sala que,
em seu novo estado, parece achatar se, querendo esmagá-la.
Ela mal nota quando Dante tira as algemas do cinto e caminha em sua
direção. Já não consegue escutar. Sua visão não registra movimentos em
tempo real, apenas uma sucessão de quadros com uma mínima conexão entre
si.
Então Lídia percebe o rosto de Dante mudar. No quadro seguinte, ele não
está mais à sua frente e ela está encostada em um canto, ajoelhada. A
forte dor na cabeça mostra que foi atingida por algo.
Talvez tivesse batido numa das prateleiras de Roberto. Teria sido
empurrada por Dante? Esta seria sua pergunta se estivesse em condições
de formular alguma.
Sem poder contar ainda com sua audição, Lídia olha para o centro do
pequeno escritório e se depara com Dante tentando socorrer Da Matta. Não
há chance de êxito, pois este se encontra com um buraco na cabeça do
tamanho de uma bola de gude. O policial teria se suicidado? Esta seria
sua indagação se Dante não estivesse vindo em sua direção, naquela
mesma sucessão de imagens que seus olhos insistem em fazer, traindo sua razão.
Teria Dante perdido a cabeça e matado o seu parceiro? Esta pergunta
passa por sua cabeça, mas ao sentir que carrega algo em suas mãos,
percebe a verdade:
– Larga a arma, dona Lídia!
É a primeira coisa que a ex-namorada de Roberto consegue ouvir depois do
frio na espinha. Sua visão faz as pazes com o resto do corpo e ela
pouco a pouco consegue visualizar as coisas normalmente.
Vê a arma de Dante apontada para si, vê a arma de Da Matta em suas mãos,
vê sangue em sua roupa e sabe imediatamente que não é seu. Ouve o
comando do policial e aponta a arma para ele. Quase visualiza o clarão
causado pela combustão da pólvora e quase consegue ver a bala sair e
invadir sua cabeça.
– Dona Lídia? – pergunta Dante, segurando-a pelos braços à altura dos bíceps. – O que aconteceu?
Lídia percebe que estivera em transe e imediatamente olha para Dante assustada.
– Da Matta!
Vira-se para o computador e vê Da Matta em frente ao monitor, com a arma
apontada para a cabeça, tal qual a animação da bonequinha negra está
fazendo. – Não faz isso!
Lídia tenta pegar a arma da mão do policial, porém apenas apressa a sua
sentença, fazendo-o atirar em si mesmo. Em suas mãos, sobra apenas a
pistola e o sangue do soldado tombado mancha sua roupa.
Ela é empurrada para o lado por Dante, batendo a cabeça na prateleira. Naquele momento,
percebe que sua vida está em risco. Lídia pensa em atirar em Dante
enquanto ele está ocupando tentando socorrer o companheiro, mas hesita
em fazê-lo.
Quando Dante se volta para ela, apontando-lhe a arma, algo em sua mente
lhe incentiva a atirar no policial. Algo no seu íntimo afirma que daria
tempo de acertá-lo antes que ele pensasse em alvejá-la. E é por isso que
ela ignora Dante pedindo que abaixasse a arma.
– “Vamos, você consegue!” – diz a voz, vinda do nada. Por um segundo ela
acredita e engatilha a arma. Dante grita desesperado, pedindo para ela
parar.
Lídia olha para o policial à sua frente e para o cadáver do soldado
caído, começando a chorar. Desolada, coloca a arma no chão antes mesmo
do cabo pedir uma terceira vez.
– É melhor sairmos daqui, dona. Este lugar vai nos matar! – ordena Dante, puxando a inerte pela mão.
A caminho da porta, o interfone toca, assustando-os. Os primeiros toques
do aparelho são encarados com desconfiança. No quinto toque, Lídia
vence o medo e atende. Segundos depois, bate-o. Dessa vez, é ela que
puxa o policial para fora do apartamento.
– O que foi? – pergunta o policial, sem entender o rompante da garota.
– Roberto acabou de passar pela portaria.– responde Lídia. – Ele estava no prédio o tempo todo!
Dante está tão contagiado pelo mórbido ambiente que mal lembrava do
“meliante” que motivou sua entrada àquele inferno. Ele só consegue
pensar no seu colega de profissão estirado no escritório de um
apartamento da Mata da Praia. E treme ao pensar que este destino mórbido
certamente seria o dele, se o companheiro não o tivesse impedido,
ganhando a morte em troca de sua boa ação.
– Nós vamos pegar seu ex-namorado, garota... – afirma Dante com um tom raivoso. – ... e que o diabo tenha pena dele!
O silêncio é total dentro do Fiat Uno vermelho de quatro portas. Plínio,
geralmente um cara brincalhão, está calado como um morto. Roberto não
consegue muitas informações sobre o tempo que ficou trancado com a
diabrete na casa de André. O que ele sabe é que já está no centro da
cidade de Vitória e, de acordo com o movimento desordenado da multidão
nos restaurantes, é em torno do meio-dia, hora do almoço.
– E então? – pergunta Plínio para Roberto, abaixado no banco traseiro.
– Então o quê?
– Você não vai me dizer o que está acontecendo? – retruca Plínio, dirigindo e olhando o amigo pelo retrovisor interno.
– N-não sei do que você está falando! É tudo um imenso engano e...
Plínio freia abruptamente o carro, fazendo Roberto cair no piso do carro.
– Não me faça perder a paciência, Beto! Uma amiga me ligou desesperada,
procurando por você, dizendo que você arruinou a vida dela. O que você
fez? Andou desviando dinheiro de novo? – fuzila, oferecendo como
acompanhamento um olhar raivoso e uma sequência de tapas.
– Ai! Para com isso, rapaz! Com tanta coisa acontecendo em minha vida,
você acha que eu vou ter tempo para fazer algo com alguém? – indaga
Roberto, enquanto tenta se proteger das agressões.
– Pergunte isso a Ingrid! – diz Plínio, voltando-se ao volante, movendo o carro novamente.
– Ingrid? Aquela menina japonesa? Ingrid.gatinha? – questiona Roberto,
temendo o pior. Lembra-se de ter mandado a maldita corrente para ela.
– Ah, então você lembrou, não é? – diz Plínio, tentando ver Roberto pelo retrovisor.
Mas a resposta que tem é a porta direita da parte traseira do carro se
abrindo. Roberto se joga na calçada, tentando fugir do colega que há
pouco o salvara.
– Roberto! Volta aqui, porra! – grita Plínio. Ele sai do veículo e corre em direção ao amigo que acaba de dobrar a esquina.
A mão de Roberto comprime o abdômen com firmeza e lhe mostra que precisa
ser medicado, mas ele ignora a dor e continua correndo, metendo-se na
multidão.
Dante e Lídia se despedem do amaldiçoado apartamento de Roberto. A
prioridade do policial é colocá-la em segurança, pois suspeita que o
hacker virá atrás dela.
– Como isso pôde acontecer? – diz Lídia, com um suspiro cansado. – Como o Roberto fez aquilo com a gente?
– Não podemos dizer que tenha sido ele o culpado do que aconteceu lá em
cima, dona Lídia – afirma Dante, abrindo a porta da viatura para a
garota.
– O quê? Você está cego? – diz, indignada, enquanto entra na viatura. –
Você viu o que aconteceu com a gente naquele apartamento! Como pode
dizer isso agora?
– Eu sei o que vi, dona – responde Dante, batendo a porta do carona.
Ele entra no carro e continua o assunto.
– Mas como vou reportar ao meu superior o que aconteceu? “Sr., fomos
atender um chamado, uma garota afirmava ter um assassino trancado em
casa, mas não havia nada além de um computador que QUERIA ME FAZER
COLOCAR UMA BALA NA CABEÇA?” Pense, você acreditaria em algo assim?
O silêncio de Lídia indica sua concordância com o policial. Ele liga o
carro e parte daquele nefasto lugar. Num sinal de reconhecimento da
atual situação, Lídia solta um lamento.
– Estou fodida.
– Estamos, dona. Estamos.
– Me chame de Lídia.
– Ok, meu nome é Dante.
O policial começa a pensar seriamente na situação. Como iria explicar o
que aconteceu? O parceiro dele está morto e não há uma forma aceitável
de dizer o que o levou a atirar contra a própria cabeça. Isso certamente
vai destruir a sua carreira, podendo culminar numa prisão. Ele precisa
de uma explicação para tudo aquilo.
– Tudo bem, Dante? – pergunta Lídia, já não aguentando o mórbido silêncio.
Ao voltar de seu devaneio graças à interferência de Lídia, Dante sente uma ideia ser soprada no seu ouvido.
– Ponha a culpa nela – espeta a voz sombria, gutural.
“E se eu puser a culpa nela?”, pensa Dante.
– Afinal, as digitais dela estão na arma – explica a voz, de forma mais direta do que uma simples sugestão.
“É verdade!”, Dante acena com a cabeça, num sinal de positivo.
– Uma análise aprofundada na pele e roupas mostrará sangue do soldado. E
achariam facilmente vestígios de pólvora nas mãos dela – esclarece a
voz, agora em sua cabeça, ecoando por toda parede interna de seu crânio,
como uma ordem inquestionável.
– É... com certeza! – afirma com um sorriso medonho, deixando o pensamento tomar forma de palavras sem notar.
– Com certeza o quê? – indaga Lídia, ao ouvir a frase desconexa de Dante.
– Você vai ver!
O policial faz uma virada brusca numa rua.
– Para onde nós vamos? A delegacia é para lá!
Dante não responde. Ele segue para uma rua sem saída e com pouco movimento no bairro de Andorinhas, ao lado do mangue.
No meio do pânico, é a vez de Lídia ouvir uma voz ao pé do ouvido:
– Saia já daí. Ele quer matar você.
Ela arregala os olhos. O medo toma o seu corpo e a deixa estática. Não
sabe se está assim por ter escutado aquelas palavras vindas do nada ou
por seu significado.
– Não perca tempo! Saia já daí e ache Roberto! Ele é o único que pode te
ajudar! – ordena a voz em sua cabeça. Ao contrário da que Dante ouviu,
esta é mais suave, infantil, pertence com certeza a uma menina.
Lídia assusta-se com o conselho da estranha voz, mas o olhar de Dante
evidencia as suas intenções. Seus olhos fixos na parede no fim da rua
mostram uma pessoa fora de si.
Ela arrisca um ridículo diálogo:
– Dante?
Ele não responde. Seu olhar continua fixo no muro que se aproxima. Lídia insiste.
– Dante?
– Sim? – responde Dante, ainda com os olhos fixos em seu trajeto. É uma resposta mecânica, ele responde sem sequer notar.
– Você... – Lídia precisa dar uma pausa, engolindo em seco. – Você... vai me matar?
– Vou – afirma Dante, ainda sem tirar os olhos do fim da rua.
O pânico toma conta de Lídia novamente. Sem fôlego, ela ensaia um grito
que não sai. Pede a si mesma para ouvir aquela voz de menina a
orientando sobre o que fazer. E ela não tarda a vir.
– O acelerador.
Lídia não entende de imediato. Mas não demora para pôr o cinto de segurança e pisar firme no acelerador do carro.
– Hã?! O que você pensa que está fazendo, garota? Querendo resistir à prisão, não é?
Dante tenta pegar a sua arma no coldre da cintura. Ele encontra
resistência em Lídia, que continua com o pé colado no acelerador
enquanto o soca.
– Isso facilita as coisas... e muito! – conclui. Dá um soco em Lídia,
que perde os sentidos. Ele pisa no freio, mas o encontro entre o carro e
a parede ao fim da rua é inevitável. O policial amaldiçoa a garota
antes de ser projetado para fora contra o cimento. Seu cérebro adiciona
tons de vermelho e cinza, enriquecendo a pobre decoração daquela rua sem
saída.
Próximo capítulo:
Mas a garota percebe que o silêncio não é total. É possível ouvir uma fraca respiração, som de carros passando, ruídos urbanos.
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