Série A CORRENTE:
(Leia Antes: Prólogo, Capítulos: 1, 2, 3, 4, 5)
Você... Quer saber...O que a velhinha contrabandeava?
Ao abrir a porta do apartamento de Roberto, Lídia é surpreendida pelo celular do seu ex-namorado sendo jogado contra a entrada.
– Ei! – exclama ela. – Que é isso?
– Gésser vai morrer! Eu sei disso! – diz Roberto, levando as mãos à cabeça, desesperado.
– O Junim morreu? – Pergunta Lídia, deixando cair no chão o saco de
papel contendo quatro pães de sal. Ela não o conhece, mas Roberto sempre
fala nele. Em sua opinião, os conselhos do antigo colega de escola ajudaram a desenvolver o senso crítico de Roberto, muito mais que o próprio amigo imagina.
– Não! – diz Roberto pegando o telefone sem fio e digitando trêmulo o número de Gésser. – Ele VAI morrer!
Gésser está na metade da Segunda Ponte, ainda ouvindo as músicas pirateadas da internet.
Sente-se melhor com a ligação do seu amigo de infância. Ele tem
esperança de que seja um recomeço. Eram inseparáveis, quando saíam da
aula, metiam-se nos fliperamas e jogavam até anoitecer.
De repente, seus pensamentos são interrompidos pelo silêncio total em seu carro. O aparelho de som parara de tocar.
– Mas que diabos está acontecendo?
Em seu apartamento, Roberto liga para todas as pessoas ligadas a Gésser, procurando um modo de falar com ele.
Tenta a casa dele, a da namorada, o trabalho – onde ele ainda não havia
chegado – e a casa da mãe. Todos lhe dão o telefone celular, que se
encontra desligado.
– Vou ligar para polícia! – diz Roberto.
– Pelo amor de Deus, Beto! Diga o que está acontecendo! – implora Lídia, desesperada.
– E-eu também não sei! Mas algo vai acontecer com Junim! – responde, dirigindo-se para o escritório.
Lídia o segue, pegando o saco com pães no chão. Encontra Roberto já sentado em sua cadeira, encarando a tela de Itens enviados.
– Você acha que ele vai te responder um e-mail? – desdenha.
– Eu não estou vendo isso – explica Roberto, clicando no endereço de
correio eletrônico gesserjr@superlink.com, que se encontra com uma parte
maior tomada pela cor vermelha, exatamente a parte que também está
sublinhada. Esse detalhe, porém, passa totalmente despercebido.
Outra janela se abre e começa um download. A barra é carregada lentamente, e para em vinte por cento.
O polegar pressionando a tecla mais do controle remoto, apontado para o
pequeno painel do Escort 95, vem acompanhado de algumas ofensas à
gravação pirata. A música que Gésser mais gostava estava danificada. Não
se ouvia nada daquela faixa, a não ser alguns chiados.
Sua atenção é desviada para um pombo que colide contra o para-brisa,
assustando-o de tal modo que quase perde o controle do carro.
Refeito do susto, Gésser tenta se acalmar, dizendo para si mesmo que
pode pegar novamente aquela música na internet. Melhor ainda, pode pedir
ao Roberto para pegar esta e outras músicas para ele.
Então, Gésser aponta o controle para o aparelho de som, desta vez apertando a tecla “menos”, mas de repente para.
– O quê?
Com a certeza de ter ouvido uma voz em meio ao chiado daquela faixa
defeituosa, volta a aumentar o volume, deixando o chiado a uma altura
consideravelmente incômoda, já quase no final da ponte.
Ele se inclina para frente, chegando mais perto do aparelho. Uma palavra
é pronunciada, e Gésser tem certeza que é exatamente isso o que ele
escuta:
– Gésser.
Ele arregala os olhos e esquece da pista por um segundo. Imagina
inúmeras explicações para o que ouviu, entre elas a de que aquele
aparelho não pronunciou seu nome em meio aquele chiado.
Aumenta mais o volume, transformando aquilo em algo incômodo até para
ele, acostumado com a potência da aparelhagem do seu carro. E então ouve
novamente:
– Gésser.
Roberto desiste de ligar para a polícia. Ele imaginou o quanto achariam
ridículo ouvi-lo dizer que seu amigo vai morrer. Sob quais
circunstâncias? Onde ele está agora? Como VOCÊ sabe disso?
Não saberia responder nenhuma destas perguntas.
E a barra de download chega a cinquenta por cento.
Gésser está todo voltado para o chiado que diminuía drasticamente, dando lugar a uma pequena voz.
– Gésser. Você...
Ele prende a respiração. Tem certeza que seus dois auto-falantes de 550
MPOs estão levando aos seus ouvidos uma voz gutural, que nitidamente diz
o seu nome.
– Cara... Que coisa louca! – diz, levemente surpreendido. Ele nunca fora
de se intimidar fácil e quer saber aonde aquilo poderia levá-lo.
Percebendo que a estranha e funesta voz começa a falar novamente, Gésser cala-se.
– Gésser... Você... Quer....
O silêncio toma conta do Escort, enquanto o veículo aproxima-se do final da ponte.
– Você... Quer saber... O que a velhinha contrabandeava?
O rapaz não tem mais dúvidas que seu aparelho de som – mais precisamente
aquele pendrive, através do seu som – está falando com ele. Como se
consentisse com a pergunta do seu aparelho, aguarda.
– ... Aumente o som.
Gésser aumenta ainda mais o volume do aparelho. Dava para ouvir os
auto-falantes ameaçando estourar se o som de uma agulha caindo num piso
passasse por eles. Ele saliva, esperando a solução daquela piada que
recebera de Bruna. Seu carro está silencioso como uma biblioteca
londrina, um túmulo correndo a sessenta quilômetros por hora sobre o
final da Segunda Ponte.
E depois de segundos de espera, a curiosidade de Gésser é saciada:
– Motonetas. A velhinha contrabandeava motonetas!
A música danificada que Gésser pegara da internet restaura-se por
intervenção do desconhecido dono da voz, despejando para o interior do
carro toda a potência do aparelho que ele tanto se orgulha.
O solo de guitarra avassalador da banda Pé do Lixo bombardeia o carro
com uma intensidade que seus para-brisas não conseguem conter,
rachando-se em vários lugares.
O mesmo som capaz de trincar vidros temperados, acostumados com os
rigores do frio e calor, faz verter fios sangue dos ouvidos de Gésser,
que, chega a gritar, mas tem sua voz totalmente afogada pelo som de sua
banda preferida.
Sentindo um misto de susto com dor, Gésser faz o carro patinar pela pista, fechando a passagem
do veículo que vinha atrás. O som ensurdecedor está acabando com a sua
capacidade de raciocinar e ele não sabe se mantém as mãos no volante ou
se tapa os ouvidos ensaguentados.
A indecisão faz com que ele não esteja preparado para o encontro com os
beirais da ponte. O carro que vem atrás consegue desviar-se em tempo.
Gésser está com cortes na testa e no supercílio direito, talvez com seu
braço esquerdo quebrado, joelhos esfolados, além de completamente surdo.
O sangue que vertera dos ouvidos encontra-se no pescoço, manchando a
sua camisa branca. Seu carro, colado com a mureta da ponte, parece pior
que ele. A sua aparelhagem de som de quatro mil e trezentos finalmente
desliga.
– Dr-droga! – exclama Gésser. – Meu carro não, droga!
Em um gesto automático, mexe na marcha do carro. Ao segurar o volante
com o braço esquerdo, sente uma fisgada e fecha os olhos de dor.
Quando olha para frente, vê uma garota trajando um vestido encardido,
com algumas manchas de fuligem. Ela estava descalça e seu corpo trazia
grandes queimaduras.
– Deus do céu! Devo ter causado um acidente!
Ainda sentado no banco do motorista, Gésser força a porta do carona para
sair do carro, mas parece trancada. A garota caminha em direção a ele,
com seu rosto repugnante e para a dez passos do carro.
Gésser continua a forçar desesperadamente a porta que resistia. Ele para
alguns segundos quando nota que o pombo continua em seu para-brisas,
começando a decompor-se, um misto de carne pútrida e cinzas.
A garota com queimaduras pelo corpo olha-o, causando um pavor
descomunal. E então, comandado pelo nada, seu aparelho de som, fruto do
investimento de anos, recomeça a funcionar.
A mesma voz gutural que anteriormente foi emitida por aqueles
alto-falantes agora debilitados volta a soar. Mesmo com a sua audição
comprometida, consegue ouvir:
– Por que não repassou a corrente, Gésser?
Gésser nada entende. Continua a forçar a porta e, depois de muito esforço, consegue abri-la.
Olha para frente e se espanta ao ver que a garota com queimaduras não
está mais lá.
Então Gésser vira-se para trás e vê um caminhão vindo numa velocidade
acima do permitido na ponte. Tenta sair do carro, mas suas pernas
encontram-se presas pelo painel.
Como fruto de bruxaria, a menina queimada aparece no meio da pista,
correndo de encontro ao Mercedes, que leva um carregamento de café bem
amarrado em sua carroceria .
O motorista, um senhor loiro, gordo, trazendo um boné do Flamengo
cobrindo a cabeça, assusta-se com o fato daquela garota ter surgido do
nada, afinal não estava ali segundos antes. Habilmente, o caminhoneiro
desvia-se dela, invadindo a pista da sua esquerda, partindo de encontro
ao Escort parado.
Gésser contempla aquele imenso pedaço de aço sobre rodas vir em sua
direção. Não tem mais do que três segundos de vida. Quer fazer dezenas
de coisas, dizer outras tantas, mas com o tempo que lhe resta...
Ele apenas respira fundo.
O caminhão bate na traseira do carro, esmagando o lado esquerdo. Com o
avanço do Mercedes, o Escort 95 gira noventa graus sentido anti-horário,
deixando o lado do motorista de frente com o farol esquerdo do
caminhão, que tenta desviar para direita.
O Escort capota, projetando parte do corpo de Gésser para fora do carro,
pela janela do carona. Para de rodas para o ar. O carregamento de café
se espalha na pista, obstruindo a passagem e cercando Gésser, como uma
grande barreira de isolamento feita de grãos.
Uma câmera fotográfica que registra infrações de velocidade, instalada
pelo Departamento de Trânsito de Vitória, capta o cadáver de Gésser em
meio aquela destruição que, vista por terceiros, parecia apenas mais um
acidente comum engrossando as estatísticas.
A imagem
é enviada via cabos de conexões em rede para o computador do
Departamento de Trânsito, localizado na Reta da Penha, na Praia do
Canto, viajando pela internet. Porém, uma cópia desta imagem não vai
para onde deveria ir, dirigindo-se então para Mata da Praia.
Irritada, Lídia segura o rosto de Roberto com as duas mãos, como se
quisesse esmagá-lo. Ele está sentado em sua cadeira – onde viu a si
mesmo morrer, de costas para o monitor de seu computador.
– De uma vez por todas, diga-me o que está acontecendo!
– E-eu não sei, Líli! – diz Roberto, confuso. – Alguém quer me culpar!
– Culpar de quê?
– Da morte do André!
– Do André? E você tem algo a ver com isso?
– Claro que não! – responde Roberto, tirando as mãos de Lídia de seu rosto – Mas alguém colocou a foto dele no meu computador!
– Me mostra! – pede Lídia, cruzando os braços.
Roberto vira para o computador e observa que a barra de tempo do Internet Explorer chegou a noventa por cento.
– Oh, meu Deus – Roberto levanta assustado. – Não pode ter acontecido. Por favor, não...
Suas preces não foram atendidas. A imagem descarregada em seu computador
é chocante. Apesar do rosto do cadáver estar irreconhecível, o Escort
95 prateado, destruído e de rodas para o ar não lhe deixa nenhuma
dúvida. Era Gésser.
Roberto relembra os momentos de garoto que passara com seu amigo, das
promessas de reencontro sempre postergadas, dos raros momentos passados
juntos na idade adulta, e de quando lhe mandou o e-mail de Bruna.
– As pessoas para quem eu mandei aquela corrente estão morrendo! – explica Roberto, os olhos marejados.
Lídia analisa a foto que mostra a vítima de Roberto com parte do corpo para fora do carro.
Finalmente, ela conhece o velho amigo de seu ex-namorado. Não pode dizer
como ele seria quando vivo, não do modo que ele se encontra: rosto
desfigurado pelos vidros, fraturas expostas no braço, cabeça
descompromissada com o corpo, já que o pescoço quebrado não unia os
dois, encarregando apenas a carne e a pele para tal serviço, que fazem
mostrando o mínimo de naturalidade, como um casamento mantido apenas por
aparências.
Lídia mantém a calma. Talvez por não conhecer a vítima, talvez por ser
mais forte que Roberto, ou ambos. Apenas respira fundo, tentando impedir
o vômito que ameaça romper garganta acima.
Recuperada, clica nas outras janelas abertas do Internet Explorer e vê Leda, que também não conhecera e, finalmente, André.
Ela respira fundo mais uma vez.
– C-como estas fotos foram parar no seu computador? – pergunta,
sentando-se na cadeira e, com a mão no mouse, guiando o cursor para a
janela minimizada de Itens enviados.
– São pessoas para quem eu mandei um e-mail. Uma corrente, na verdade.
Era uma zoação com eles – responde Roberto, andando de um lado para o
outro.
– Uma corrente? – Lídia maximiza a janela de Itens enviados.
– É. Lembra quando eu te falei que eu havia mandado uma mensagem para o dançarino? Então.
Eu...
– Beto... – Lídia vira-se para Roberto, assustada. Sua pele levemente
morena parece ter perdido toda a melanina, deixando-a branca como o
leite.
Roberto olha para a tela do computador e vê Lídia apontando para o
endereço de correio eletrônico de nome lilitop@liliworld.com, o último
da lista para qual enviara a maldita corrente. Suas vistas começam a
turvar, as pernas parecem não lhe obedecer. Ele tenta apoiar-se, levando
a mão ao encosto da cadeira onde Lídia está sentada, mas sem êxito.
Roberto cai, inconsciente, não ouvindo, mas sabendo exatamente o que Lídia iria lhe dizer:
– ...O que meu e-mail está fazendo nesta lista?
No capítulo 7
“Oi, ingrid! Já olhou o seu e-mail hoje?
Ass.: Bruna.”
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