sexta-feira, 5 de julho de 2013

A CORRENTE Capítulo 4 - Estevão Ribeiro

Série A CORRENTE:
(Leia Antes: Prólogo, Capítulos: 1, 2, 3)



Capítulo 4 – ...Leda, Leda, Leda! Por que não repassou o e-mail da Bruna? 



Passando pela porta de vidro com um andar preguiçoso, Leda chega de sua pausa para o almoço feita forçadamente mais cedo, mais precisamente às onze horas e trinta minutos, para sua amiga Norma poder também almoçar.
Ela trabalha na Filmagia, uma locadora de filmes instalada numa pequena loja em uma galeria comercial pouco movimentada, nos arredores do centro de Vila Velha. A galeria resume-se a um corredor mal iluminado com várias lojas envidraçadas frente à frente. As más condições do local afastaram lojistas e clientes, fazendo da Filmagia um dos poucos comércios do local. O dono da locadora está negociando a mudança do seu estabelecimento para outro lugar, mas por enquanto, fica no fundo de um corredor escuro, perdendo clientes.
Isso tudo implica no humor de Leda. Os seus passos preguiçosos se devem ao baixo salário. Já que não pode ter uma refeição decente, come num restaurante barato da esquina. O cumprimento à colega de balcão é quase um gemido. Sua cara de descontentamento logo denuncia.
– Xii... A comida do Espetu’s está pior do que de costume, né?
– Ô.
– Bem, então eu acho que vou comer um salgado no Pascoal. Depois vou à pracinha bater perna – diz Norma, arrumando a pequena bolsa de imitação de couro de jacaré.
– Vai pela sombra – resmunga Leda.
Mal Norma passa pela porta de vidro da locadora, Leda acessa o computador que contém os dados cadastrais dos clientes. Guia o ponteiro do mouse em direção ao ícone do Firefox, sua chave de entrada preferida para o mundo virtual, entra naquele emaranhado de informações e acessa um chat chamado Encontros @fins, do qual é visitante assídua. Procura uma pessoa legal para viver um romance, casar, ter filhos e ser feliz. Parece ser uma das poucas românticas remanescentes desta década. Seu excesso de zelo a faz adotar o apelido Cinderel@.

Cinderel@ entra na sala.
Flor-RJ – Moro em Copacabana.
Gostosinho – Alguém q tc?
Pau grande para Flor-RJ – Quer tc num chat particular?
Linda-ES para Matador12 – Daonde vc tc?
Romeuc@pixaba para Cinderel@ – Vc demorou hoje!
Flor-RJ – Não. Acho que aqui tá bom.
Gostosinho fala no ouvido de Cinderel@ – Da onde vc tc?
Matador12 – SP
Zota entra na sala.
Negão facim-facim para Pau grande – Que corte, hein camarada??????!!!!!!

O coração de Leda salta do peito. Romeuc@pixaba está no chat, como em todos os dias. Eles já estão íntimos, permitindo-se brincadeiras, muitos elogios e intenções de marcarem um encontro. Ele chegou até mandar uma foto para ela, que reluta em devolver a gentileza.
Romeuc@pixaba brinca com Leda, dizendo que não vai achá-la feia, que não deve se preocupar.
De fato, ele não se decepcionaria se a visse.
Apesar do uniforme da locadora transparecer o mau gosto de seu patrão, ela consegue se fazer chamativa a ponto de receber alguns galanteios de clientes do estabelecimento. Mas ela não nutre por eles nenhum sentimento a não ser agradecimento, pois a maioria era casado ou envolvido afetivamente com terceiras. Os galanteios saíam da natureza masculina de flertar.

Cinderel@ para Romeuc@pixaba – Desculpa! Eu tive alguns problemas.
Matador12 para todos – visitem meu fotolog: www.matador12.fotolog.com.br!
Flor-RJ para Negão facim-facim – Não, estou sozinha faz um tempão.
Linda-ES grita para Gostosinho – SE ENXERGA MOLEQUE!!!!!!!!!!!!
Pau grande para Flor-RJ – Tá se achando, né guria?
Romeuc@apixaba para Cinderel@ – Tudo bem. Quer ficar aqui ou ir para um chat reservado?
Zota para Cinderel@ – Larga o babaca e tc comigo, gatinha.
Negão facim-facim para Flor-RJ – Demorô, então! C tem MSN?

Este é o seu melhor momento no dia. Leda aproveita o baixo movimento da locadora para trocar afagos eletrônicos como uma donzela romântica da era tecnológica. Naquela hora, não existe a Leda com baixo salário, com um emprego que lhe toma o dia inteiro, nem a Leda de poucos amigos, que só encontra pela internet quando anunciam seus casamentos ou suas promoções.
Roberto é o único que manda mensagens, mesmo que esporádicas, com um “Como vai, a gente precisa marcar uma saída para beber!”. Mas os seus trinta minutos mágicos a fazem esquecer até Roberto, a péssima refeição que fez e todos os seus problemas.
Os abutres do chat não podem ver um apelido feminino que atacam. Mas a procura de Leda é pelo Romeuc@pixaba. Assim que o encontra, ela perde a noção de quem está no chat ou quem entra. Suas atenções são apenas voltadas para ele.
Talvez seja esse o motivo de não perceber Bruna entrar no chat.

Bruna entra na sala.
Cinderel@ para Romeuc@pixaba – Vamos ficar mais um pouco aqui.
Matador12 sai da sala.
Flor-RJ sai da sala.
Negão facim-facim sai da sala.
Linda-ES sai da sala.
Gostosinho sai da sala.
Pau grande sai da sala.
Zota sai da sala.
Romeuc@apixaba sai da sala.

Leda estranha o que vê. Todos os usuários saíram misteriosamente do chat sem nenhuma explicação.

Cinderel@ para todos – Kd todo mundo?

Ela não obtém nenhuma resposta. Tenciona clicar no botão “Sair do chat”, localizado no canto inferior direito de seu monitor. Porém, seu ato é interrompido quando olha para a tela.

Bruna para Cinderel@ – Não os queria aqui.

Leda não entende. Depois de refletir alguns segundos, deixa o mouse de lado e se dirige a única pessoa no chat.

Cinderel@ para Bruna – O q?

Segundos depois, ela recebe a resposta:

Bruna para Cinderel@ – Não os queria aqui. Eles não são importantes para mim.
Cinderel@ para Bruna – Do que vc tá falando?
Bruna para Cinderel@ – Você tem olhado os seus e mails?
Cinderel@ para Bruna – E deveria?
Um silêncio se segue. Leda olha para a tela do chat, intrigada pela resposta de Bruna. Segundos perduraram por quase um minuto.

Bruna para Cinderel@ – deveria.

Leda acessa a sua caixa postal, mas deixa a janela do chat também aberta. Lá encontra algumas mensagens que seus amigos mandaram, a maioria com dicas para um bom dia, mensagens de felicidade que receberam e, por amizade ou vingança, passam para frente, entupindo as caixas postais alheias.
Ela volta à janela do chat.

Cinderel@ para Bruna – Não tem nada. Qual é a brincadeira?
Bruna para Cinderel@ – Nada mesmo? Cheque de novo.

Leda volta a acessar sua caixa, na tentativa de achar entre aquelas mensagens algo realmente importante, mas nada lhe chama a atenção. Segundos depois de uma rápida varrida com os olhos, ela se depara com algo novo: uma mensagem que traz o título “Simpatia para conquista do amado”, e sua remetente é Bruna.
Hesitante, Leda clica na mensagem, perguntando-se como aquela pessoa teve acesso ao seu e-mail, se ela mesma quase não o usava por não ter computador em casa. Mesmo em dúvida, lê a mensagem.

Oi.
Você não me conhece, mas mesmo assim lhe ajudarei a conseguir o que deseja. Tenho escrita abaixo uma simpatia que lhe trará um belo namorado.
Se você já tiver pretendente, ela servirá para fazê-lo não desgrudar de você.

Leda nunca acreditou em simpatias, mas Norma não chegaria em menos de meia hora, e ler aquela mensagem a ajudaria a matar o tempo.

Para conquistar a pessoa amada, você deve escrever o nome dela nesta mensagem e mandar para sete pessoas, com a frase “Passe meu amor adiante” na linha Assunto e o seguinte comentário no seu interior:

Olá! Acabei de receber esta mensagem de uma garota de 16 anos que já morreu. Ela me prometeu trazer a pessoa que eu amo aos meus pés se eu passasse esta mensagem para você.
Passe esta mensagem adiante que você também será beneficiado. Não quebre esta corrente, as consequências podem ser irreparáveis!
Sabe-se de um caso de uma pessoa que não passou esta mensagem para frente e viu a sua amada ser atropelada por um carro.
Teve o caso do rapaz que deletou esta mensagem e quebrou o pescoço quando saía do banheiro.
Quer aumentar esta lista de finais infelizes? Então delete esta mensagem, mas se você quer ser feliz como eu, passe-a para frente!

Leda engole em seco. Não pensara que alguém podia ter uma mente tão perversa a ponto de pôr uma mensagem tão forte na internet.
Sem pestanejar, deleta-a e vai ter com a garota do chat.

Cinderel@ para Bruna – Foi um e-mail de péssimo gosto, garota. Já o deletei e, por favor, não me mande mais coisas como esta.
Bruna para Cinderel@ – Péssimo foi o que acabou de fazer, Cinderela. Te dou uma chance de ser feliz e me trata assim? Me aguarde...
Bruna sai da sala.

Ela odeia encrenqueiros de internet, essa gente desocupada e mesquinha. Leda sente as pulsações nos seus tímpanos, do coração batendo forte. Decide fechar a caixa de correio eletrônico e fazer alguma outra coisa para passar o tempo.
Com a mão direita no mouse, tenta guiar o cursor para o X existente no canto superior da janela, mas ele inexplicavelmente não a obedece. O cursor se move sozinho em direção ao botão Enviar/Receber, clicando-o em seguida, deixando Leda sem saber o que fazer.
Recebe mais uma mensagem de Bruna, trazendo na linha Assunto a frase Ligue a TV no canal 19.
Com o controle do mouse novamente, ela apaga a mensagem, mas não esquece o que dizia. Olha para o controle remoto em cima do balcão, ao lado de um espeto de vinte centímetros, cromado e com base em madeira, com sua ponta para cima, utilizado para prender comprovantes de contas e avisos. Estende a mão, pega o controle e senta num banco em frente à TV de quatorze polegadas, instalada a dois metros do chão, numa superfície de aço chumbada na parede.

Uma mão segurando um controle remoto aponta para a TV, pressionando a tecla mais do volume.
É Roberto, no simples quarto de um hospital particular, ao lado de sua amiga Lídia, querendo saber mais sobre a morte de André, o vizinho dançarino que lhe administrara um bem colocado soco no nariz na noite passada.
Roberto devia se sentir vingado, mas não consegue. Se seu vizinho tivesse quebrado uma perna, riria ensimesmado até não poder mais. Mas ele está morto.
– Eu quase morri e o meu vizinho morreu. Ainda ontem ele quase me quebrou o nariz! Agora, ele está morto.
– Você não está feliz com isso, não é, Beto?
– Pelo amor de Deus, Líli! Claro que não! É que eu o vi ontem, caramba! Mandei um e-mail pra ele na madrugada!
– Ele te bateu e você mandou um e-mail para ele? – pergunta Lídia, arregalando os olhos. – Cê tem sangue de barata, rapaz?
– Era um e-mail para tirar uma com a cara dele!
– Ah, vai gostar de apanhar assim lá na China!
– Você não entendeu, Líli. Eu mandei o e-mail com um apelido que ele não conhece. Além do mais, o cara era um babaca!
– Agora é um babaca morto.
– É, mas a polícia pode querer me acusar de algo. Vamos ver o noticiário.
O noticiário fala da tragédia acontecida no apartamento 402 do quarto andar do edifício Éden, onde o professor de dança André Pereira Lobato, 31 anos, foi encontrado morto com o rosto afundado no monitor do seu computador. Ainda informa que, apesar de não haver sinais de luta, a polícia suspeita de homicídio. Alguns moradores do prédio, assim como o porteiro e o segurança, foram convidados a prestar depoimento para melhores esclarecimentos sobre o misterioso caso.
O delegado entrevistado acredita que este seja um caso de acerto de contas, afirmando que o assassino parecia conhecer a vítima, pois além da falta de sinais de luta, a entrada não foi forçada. Ele acredita que uma busca por impressões digitais pela casa achará o assassino.
A matéria fecha com imagens de fotógrafos e da perícia rodeando o corpo de André, ainda sentado com o rosto perdido dentro do monitor, tendo na área da sua cabeça uma distorção computadorizada em forma de mosaico, artifício usado para poupar o telespectador daquela terrível cena.
Leda desliga a TV com uma expressão de pavor estampada no rosto. Não estava preparada para ver algo assim em plena hora do almoço. Já ouvira falar de barbaridades, mas nunca algo assim.
Tentando voltar à velha rotina de trabalho naquela locadora fantasma, Leda dirige-se ao computador para enfim fechar a sua Caixa de entrada.
Ela percebe que há uma nova mensagem de Bruna, que traz , na linha de assunto, a frase “Viu? Fui eu que fiz”
Leda se desespera, deletando mais essa mensagem. No entanto, logo em seguida, chega outra, que traz a frase: “Ah, tem um último caso (favor ler)”.

Leda não sabe o que pode acontecer. A dor de cabeça mostra um coração bombeando sangue tão forte que parece avisar que não há outro jeito senão fazer o que a autointitulada autora da barbárie vista na TV pedia. Seus dedos suados escorregam pelo mouse, ela clica no e-mail.

O último caso de alguém que quebrou a corrente é de uma atendente de uma pequena locadora.
Ela se amedrontou ao ver na TV um rapaz que quebrou a corrente morto com a cara no computador. A atendente viu ele lhe dirigir a palavra e perdeu a cabeça. Quer saber o que ele disse?

VOCÊ VAI DESCOBRIR!!

Adeus.

Leda desliga rapidamente o computador, arrancando o cabo da tomada com força o bastante para rompê-lo.
Ela respira ofegante, pega o controle remoto e o aponta para a TV, no intuito de se distrair um pouco. A imagem demora um pouco a aparecer e lhe traz uma surpresa nada agradável. A qualidade está péssima. Leda sequer consegue compreender o que está vendo.
Decide mudar de canal e percebe que a imagem continua com a mesma qualidade, até que aperta o botão de configuração Sintonia fina e vê a imagem melhorando.
Leda arregala os olhos como se quisesse deixá-los cair das órbitas. A imagem do cadáver noticiado há menos de seis minutos ainda se encontra em sua TV e em todos os canais. O defunto tem a cabeça enfiada no monitor, mas a perícia e os fotógrafos não estão mais presentes.
Tudo está no lugar, o quarto ainda parece um local cuidadosamente ajeitado, não fosse o cadáver com o rosto mergulhado na tela. Leda aperta o controle contra o peito, sem deixar de olhar para aquele amontoado de carne morta com grandes ferimentos e queimaduras por todo o corpo.
A atendente divide com o cadáver um momento antes da entrada dos policiais, dos fotógrafos e dos câmeras. Era seu horrivelmente íntimo momento com André, nome que passou despercebido por ela.
Tenta desviar o olhar da imagem, seus instintos pondo-lhe atenta para o perigo que pressente. Leda acha que pode estar correndo risco. E não está errada.
Abruptamente, o braço do cadáver assistido na TV dá um espasmo, evidente o bastante para Leda notar e soltar um grito de susto.
Ela não acredita que aquilo aconteceu de verdade, mas a respiração ofegante para. Ela simplesmente não consegue respirar.
O espasmo agora se torna um movimento digno do pavor de Leda. Os dois braços do morto se movem mecanicamente de encontro ao monitor e forçam para tirar a cabeça do local que lhe serviu de abrigo pela madrugada.
No ato, vê-se perfeitamente parte das suas maçãs faciais, lábios e olhos despedaçando-se do rosto, resistindo à separação do monitor, como se essas partes que outrora pertenceram a uma bela face adotassem esse refúgio tecnológico como lar definitivo.
Quando Leda acha que não poderia suportar algo pior sem que pusesse para fora seu almoço, o cadáver de rosto descomposto vira para a TV rápido o bastante para não dar tempo da atendente formular um grito e, como se a conhecesse há tempos, fala-lhe:
– Leda, Leda, Leda! Por que não repassou o e-mail da Bruna?
Ela dá um pulo para trás, gritando histericamente. Seu braço derruba o espeto cromado para prender notas fiscais no chão. A criatura na TV ainda lhe diz algo que é ignorado. Ela quer sair dali.
Dando a volta no balcão, Leda corre em direção à porta para se livrar daquele lugar maldito. Mas ela não vê o espeto de vinte centímetros no chão. O metal vaza a sola do seu pé direito, fazendo-a cambalear gritando de dor e cair de encontro à porta de vidro, quebrada com a pancada de sua cabeça.
Leda olha para cima ensanguentada, deitada em meio aos estilhaços da porta, tendo o seu pescoço como alvo de um pedaço restante do vidro, a um metro e meio de altura. Sua perna fisga com a tentativa de movimento. O espeto castiga o pé e parece ter atingido algum nervo.
Ela passa as mãos nos estilhaços, cortando a palma e quebrando as unhas, na tentativa de achar no chão um ponto para poder levantar. Respira pouco, segura o grito na garganta, hesita movimentar-se para não ser decapitada.
O choro vem devagar, junto com os gemidos e a respiração abafada pelo sangue das narinas, o barulho dos cacos de vidro e a ameaça em forma de guilhotina a enlouquecem. Grita e tenta se levantar rapidamente.
Tarde demais.
Leda ouve o vidro se soltar e seu grito ecoa mais forte. No entanto, ela se vira, ainda viva. Olha para o lado e vê um par de pés queimados, com unhas descoladas dos dedos, mostrando resquícios de carne pútrida. Estendendo o olhar para cima, vê uma garota extremamente magra e q
ueimada, vestida com uma camisola encardida e chamuscada, segurando o vidro e encarando-a. – Não falei que você descobriria o que iria acontecer a ela? – diz com uma voz gutural, acompanhada com um sorriso bizarro.
– B-Bruna? Por que você está fazendo isso? O que eu te fiz?
Com seus olhos quase sem pálpebras, Bruna fita seriamente Leda.
– Você quebrou a corrente, garota! E algo assim... – diz Bruna, soltando o vidro –...é imperdoável!


No capítulo 5
– Oh, meu Deus! – a voz abafada com a mão na boca para conter seu grito, vômito ou qualquer coisa que possa sair dela. – O que esta imagem está fazendo aqui?

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